O Brasil é o país de maior diversidade mundial de peixes de água doce, onde a bacia amazônica desponta como a mais rica em espécies, incluindo numerosas espécies ainda desconhecidas para a ciência. Muitas destas espécies realizam migração obrigatória durante seu ciclo reprodutivo (tais como tambaquis, jaraquis, matrinchãs, filhotes, surubins, piramutabas, douradas, entre outros), cujo impedimento causa severa queda populacional, podendo mesmo levar ao desaparecimento das populações atingidas. As barragens são as mais importantes causas deste impedimento, figurando entre as obras humanas de maior impacto sobre as comunidades de peixes, particularmente para as espécies migradoras. Desta forma, a implantação de grandes obras que venham a interferir nas calhas dos rios desta região deve ser adequadamente avaliada em relação aos inevitáveis danos que serão causados pelos empreendimentos.
Neste momento, em vista das discussões relativas aos projetos hidrelétricos a serem instalados na bacia do rio Madeira, a Sociedade Brasileira de Ictiologia - SBI, organização que congrega os principais pesquisadores em peixes do Brasil, manifesta sua preocupação com a possibilidade de que alterações antropogênicas na dinâmica hidrológica do rio Madeira causem efeitos deletérios irreversíveis sobre a fauna de peixes e a possibilidade de conservação de um dos maiores bagres migradores da Amazônia.
Nos últimos meses, a mídia vem dando publicidade ao fato de que um bagre foi eleito como pivô de um suposto conflito de interesses entre setores do Governo, bem como também entre estes e a iniciativa privada. Neste sentido, é importante frisar que o citado bagre – a dourada (Brachyplatystoma rousseauxii) – é uma espécie de grande importância comercial na região amazônica, destacando-se os Estados do Pará, Amapá, Amazonas e Rondônia, no Brasil, e extensas regiões da Colômbia, Bolívia, e Peru. Trata-se de espécie de grande porte, que ocupa o topo da cadeia alimentar de muitos rios na Amazônia, e que merece atenção especial tal como os grandes mamíferos de florestas e savanas tropicais. A dourada faz parte de um grupo de migradores fantásticos que migram desde o estuário amazônico até os sopés dos Andes para se reproduzirem, do qual também fazem parte a piramutaba (B. vaillantii) e o babão (B. platynemum). Cardumes desses bagres migram anualmente da Amazônia Oriental para a Ocidental, percorrendo ao todo uma distância de 4 a 5 mil quilômetros. Esta migração resulta na recomposição do plantel de reprodutores que vivem nos rios situados a montante do território brasileiro. No rio Madeira, os cardumes levam de quatro a cinco meses para percorrer 3.100 km anualmente, distância do estuário do Amazonas às cachoeiras de Teotônio (situadas nas proximidades de Porto Velho, RO), viajando a uma velocidade aproximada de 15 a 19 km/dia. A interrupção do fluxo migratório pode ter um alto impacto na manutenção dessas espécies ou de suas populações, tendo em vista que estudos genéticos indicam que os tributários de águas brancas do rio Amazonas apresentam populações de douradas compostas por combinações de diferentes variantes genéticas (haplótipos). Deste modo, as alterações ambientais e a interposição de barreiras aos movimentos migratórios decorrentes da construção de barragens colocam em risco a sobrevivência das populações de grandes bagres migradores no rio Madeira.
Desta forma, a Sociedade Brasileira de Ictiologia espera que se chegue a uma solução racional e ponderada para os conflitos de uso dos recursos da Amazônia, e que se trate com a devida atenção e importância a conservação dos grandes bagres migradores. Além disso, a SBI considera inapropriada a eleição de apenas uma espécie como pivô de uma discussão que deveria abranger todo o ecossistema direta e indiretamente influenciado pelas barragens planejadas para o rio Madeira, o que inclui uma grande quantidade de espécies aquáticas e terrestres e também os fatores sócio-econômicos regionais. Finalmente, deve-se ter sempre em mente que a imensa diversidade biológica da região amazônica é de uma natureza frágil, e representa uma importante vitrine nacional aos olhos do mundo. Danos à natureza dessa região, e especialmente quando envolvem recursos naturais utilizados por mais de uma nação, podem se transformar rapidamente em uma crise de visibilidade mundial, prejudicando a imagem do Brasil.
O texto acima foi aprovado pela Diretoria e pelo Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Ictiologia (SBI), e contou com a colaboração técnica dos Drs. Ronaldo Barthem, Jansen Zuanon, Ângelo A. Agostinho e Luiz F. Duboc. A SBI é uma associação sem fins lucrativos e de utilidade publica que tem, entre outros objetivos, a missão de zelar pela conservação e utilização da fauna ictiíca do Brasil e representar a comunidade dos ictiólogos brasileiros em âmbito nacional e internacional.